Stela é mestre em Dramaturgia pela Academy of Dramatic Arts em Cetinje e autora de mais de 30 peças. Desde 2012, faz parte da equipa de crítica do festival MESS e, desde 2022, é membro do Conselho Artístico do mesmo festival. Foi presidente do conselho da RTV Cetinje de 2022 até ao início do seu mandato como diretora artística do Teatro Real “Zetski dom”.
O projeto Sexual Theatre – Feminist Readings of Classics, que integra o programa da Braga 25, resulta da cooperação entre Portugal, Bósnia e Herzegovina, França e Montenegro. Pretende desenvolver uma releitura feminista de clássicos da literatura desses países, através da criação de espetáculos inéditos que, durante este ano, viajam nesses mesmos países em formato de festival.
Braga 25 (B25) – O que te motivou a participar no projeto Sexual Theatre – Feminist Readings of Classics?
Stela Mišković (SM) – Durante os últimos anos, todos nós fomos testemunhas da considerável degradação dos direitos pelos quais as mulheres lutaram sofridamente. À medida que a política de direita se fortalece, parece que tudo aquilo por que nós, mulheres, lutámos durante muito tempo, tem agora um enorme ponto de interrogação. À medida que as políticas de direita se fortalecem, parece que tudo o que nós, mulheres, temos lutado por conquistar, por tanto tempo, é agora questionado. Os acontecimentos recentes no meu país (Montenegro), quer ao nível regional, quer global (a tendência para o aumento do feminicídio, da violência sexual e doméstica, as reações inadequadas dos organismos responsáveis por estas questões, a aplicação inconsistente das leis), incutiram em mim a necessidade de contribuir para tornar visível e sensibilizar para a existência destas questões, na medida em que as minhas competências, conhecimentos e possibilidades o permitam.
B25 – Qual é, para ti, a importância de projetos europeus como este, que realçam a importância de abordar temas tão sensíveis através de processos artísticos e criativos?
SM – A tarefa da verdadeira arte é enfrentar, através dos seus vários meios de expressão, as questões sociais mais importantes e, consequentemente, contribuir, tanto quanto possível, para as suas eventuais soluções. Dito isto, é evidente que nós, enquanto artistas, devemos refletir tudo isto no nosso trabalho. A interligação de diferentes culturas, que apesar de serem consideravelmente diferentes em alguns aspetos, exibem uma espantosa semelhança quando se trata de certos tópicos como a discriminação, a homofobia, o chauvinismo e o fascismo, é indispensável para alcançar um objetivo comum principal, que é a melhoria da sociedade em geral. Só quando admitirmos que a territorialidade, a destruição e a sobrevivência do mais forte são uma parte inerente da natureza humana, é que poderemos começar a trabalhar no sentido de erradicar estes traços negativos, e a melhor forma de o fazer é através da arte. Os projetos da UE ajudam-nos a perceber e a aceitar o facto de que estes vários problemas da sociedade nos dizem respeito a todos. Não estão no quintal de outra pessoa, podem acontecer a todos nós e só através da união e de esforços contínuos podemos, como membros ativos da sociedade, criar um futuro melhor.
B25 – Enquanto autora, qual é a relevância deste tema para o teu trabalho artístico?
SM – Um facto curioso é que, até este ano, nunca me tinha debruçado especificamente sobre as questões relacionadas com as mulheres. Trabalhando como dramaturga em vários projetos, tenho dado ênfase aos vários tipos de injustiça social (crise migratória, crimes de guerra, violência entre pares, diferenças de classe) e participei em muitos workshops diferentes (estudos sobre mulheres, mulheres na política). No entanto, isto nunca foi feito sob a forma de ativismo ou de qualquer outro compromisso socialmente importante. Dito isto, este ano é para mim a prova viva de que o ditado do filósofo chinês Tao Te Ching “Quando o aluno estiver pronto, o professor aparecerá” é verdadeiro. Este ano, fui incumbida de escrever o texto “Slučaj Virdžina”, que trata um fenómeno caraterístico apenas do Montenegro, da Macedónia do Norte e da Albânia. Nomeadamente, quando uma criança do sexo feminino nasce numa família sem um herdeiro masculino, assume o papel de um homem e vive como tal para o resto da sua vida. Enquanto trabalhava nesta peça, aprofundei-me na tentativa de explorar os direitos e os papéis das mulheres no Montenegro, tanto ao longo da história como atualmente. A realização do projeto Sexual Theatre exatamente neste momento é vista por mim como um ato do destino. Foi um sinal que me disse: “Chegou o momento. É a altura de nos vermos verdadeiramente a nós, mulheres, e às nossas lutas. Agora é a altura de nos conhecermos verdadeiramente, enquanto mulheres, e de falarmos alto sobre isso”.
B25 – Que desafios enfrentaste enquanto mulher no mundo das artes?
SM – Devo dizer que, no que diz respeito à minha profissão e ao meu trabalho, tive todo o apoio, tanto da Academia como da sociedade em geral. Os únicos obstáculos que enfrentei estavam explicitamente relacionados com a política e a situação no meu país e nada tinham a ver com o facto de ser mulher. Na minha vida privada, enquanto crescia como mulher numa sociedade patriarcal sem uma figura masculina, sofri vários tipos de injustiça e violência, mas nunca na minha carreira profissional.
B25 – Como descreverias a tua residência artística em Braga?
SM – A estadia em Braga foi de facto uma experiência fantástica, tanto a nível pessoal como profissional. Todos os segmentos organizados foram fantasticamente pensados e úteis. As conversas com as mulheres da UMAR Braga e da APAV, que se ocupam da prevenção e educação dos jovens, bem como as visitas aos lugares sagrados “Bom Jesus” e “Sameiro” foram memoráveis. Houve também as visitas aos museus do Porto, onde a maravilhosa Marta me apresentou a artistas de grande significado e autenticidade (Aurélia e Sofia de Souza). No entanto, o que eu destacaria como algo de importância indispensável para o nosso projeto, ou seja, para a minha futura peça, são as minhas conversas com a maravilhosa Sara Barros Leitão, que tinha realmente algo a dizer a quem estivesse disposto a ouvir. Através do diálogo com ela, ganhei uma visão abrangente da literatura portuguesa, das escritoras e do papel e lugar das mulheres na sociedade portuguesa ao longo da história e nos dias de hoje. A paixão e o conhecimento com que a Sara discutiu estes temas são igualmente importantes para o meu trabalho, pois considero-a uma das representantes do novo Portugal, a embaixadora de uma voz feminina forte, do tipo que muda a história.
Gostaria também de agradecer aos organizadores do projeto pela sua hospitalidade, com uma menção especial àqueles a quem agora também posso chamar meus amigos: Hugo Loureiro, Maria Inês Marques, Júlio Cerdeira e cátia faísco. Fizeram com que Braga se tornasse como uma casa longe de casa para mim.
B25 – Com a pesquisa realizada até agora, qual achas que é a interligação entre as lutas quotidianas montenegrinas e portuguesas? Quais são as principais semelhanças e diferenças em relação aos temas abordados neste projeto?
SM – Existem muitas semelhanças a nível fundamental. Os padrões do comportamento discriminatório são mais ou menos os mesmos em todo o lado (feminicídio, abuso doméstico e sexual, assédio sexual, o papel da mulher como alguém que tem de sofrer pela sua família por defeito…). O que difere o Montenegro de Portugal é o facto de em Portugal os direitos das mulheres terem sido conquistados e adotados gradualmente, enquanto em Montenegro esta mudança aconteceu praticamente de um dia para o outro, após a Segunda Guerra Mundial, embora apenas em teoria. Enquanto em Portugal uma das principais questões é a diferença salarial entre homens e mulheres, em Montenegro esse não é o caso. Por outro lado, em Montenegro continua a existir a prática de os filhos do sexo feminino renunciarem à herança em favor dos irmãos, os abortos seletivos e o já referido fenómeno Virdžina, que esperamos que esteja a desaparecer lentamente nos dias de hoje.
B25 – Que impacto gostavas que o projeto tivesse?
SM – O que eu considero ser o objetivo mais importante de todos estes esforços é que as mulheres de todos os países participantes no projeto (Portugal, Bósnia e Herzegovina, França e Montenegro) percebam que não estão sozinhas e que elas e os seus problemas são visíveis. O primeiro passo seria falar sobre os problemas que enfrentam no dia-a-dia. É importante reconhecer e nomear esses problemas para os abordar diretamente. É nossa responsabilidade, enquanto membros ativos da sociedade, ser a voz de todas as mulheres que não podem tomar uma posição por qualquer razão específica e dar-lhes força e apoio. Dito isto, os decisores políticos deveriam começar a encontrar soluções para estas questões. Este seria o estado ideal, mas não seríamos artistas se não fossemos idealistas, não é verdade?
B25 – Como vês a representação das mulheres nos clássicos literários do Montenegro?
SM – O cânone clássico da literatura montenegrina foi significativamente influenciado por modelos e valores sociais patriarcais. As mulheres permanecem frequentemente ao nível de esboços, sem individualização suficiente e sem fisionomia, uma vez que os escritores estavam, regra geral, mais interessados no coletivo, na massa anónima indiferenciada, do que no indivíduo. A caraterização incompleta mantém frequentemente as personagens femininas no domínio de uma única caraterística, de uma única ideia, afastando-as assim do domínio do real. Assim, aparecem frequentemente como encarnações de traços de carácter ou de categorias éticas específicas (astúcia, maldade, modéstia, infidelidade, etc.). O aparecimento ou a menção da mulher é frequentemente acompanhado de estereótipos de valor e de disposições da sociedade patriarcal, nomeadamente de ditos populares que tipicamente degradam a mulher. Ela é frequentemente a fonte do mal, do castigo e da vergonha.
Não há nenhum método científico que possa explicar por que razão quase não há mulheres na literatura montenegrina que apareçam com o seu nome e apelido completos, mas são sobretudo mencionadas como esposas, mães ou irmãs de alguém. A identificação pessoal é anulada e as mulheres são colocadas numa parte do mundo mais vasto, normalmente masculino.
Os narradores permanecem no domínio das suas representações e daquilo que é o seu entendimento das mulheres – as mulheres são portadoras de qualidades negativas ou vítimas mansas e obedientes.
Inevitavelmente, na representação das heroínas, carregam a inércia do mundo patriarcal que retratam. As mulheres aparecem numa luz positiva apenas como um símbolo da coragem e do heroísmo femininos, não como verdadeiras heroínas por direito próprio.
Podes ficar a conhecer melhor a Stela no primeiro episódio do videocast da Braga 25 “O Lugar”. Assiste aqui.