cátia faísco é professora e investigadora na Universidade do Minho, onde leciona Dramaturgia e Escrita Dramática na Licenciatura em Teatro. É coordenadora do NIEP (Núcleo de Investigação em Estudos Performativos). Doutorou-se em Estudos de Teatro (FLUL), com uma tese acerca do desejo sexual na dramaturgia contemporânea britânica. A sua área de pesquisa contempla ainda o período do in-yer-face e, mais especificamente, a obra de Sarah Kane. Como dramaturga, escreveu “Percentil Perfeito” que integrou as Leituras no Mosteiro (TNSJ) e “Abstinência de Purpurina”, apresentado no Espaço das Gaivotas.
O projeto Sexual Theatre – Feminist Readings of Classics, que integra o programa da Braga 25, resulta da cooperação entre Portugal, Bósnia e Herzegovina, França e Montenegro. Pretende desenvolver uma releitura feminista de clássicos da literatura desses países, através da criação de espetáculos inéditos que, durante este ano, viajam nesses mesmos países em formato de festival.
Braga 25 (B25) – O que te motivou a participar no projeto Sexual Theatre?
cátia faísco (cf) – Aquilo que me agradou mais neste projeto foi a oportunidade de pegar em clássicos e reescrevê-los à luz de uma perspetiva feminista. Esta desconstrução, e o facto de poder trabalhar com mulheres de outras gerações e culturas, convocou em mim o desejo de esbater fronteiras numa sociedade ainda tão patriarcal.
B25 – O que pensas da representação das mulheres nos clássicos da Literatura portuguesa?
cf – Durante muitos anos, recusei-me a ler Literatura Portuguesa. Não me sinto embaraçada ao admiti-lo porque, na verdade, fazia-o porque não me sentia representada. Na escola, o que conhecíamos da literatura era tão formatado, tão mastigado, tão pouco dado a outras interpretações que me recusava a entregar-me a este sistema. As escritoras apareciam quase só como notas de rodapé ou como leituras complementares, mas nunca como o centro. Como haveria de me sentir representada em clássicos cujos retratos das mulheres eram aquelas figuras frágeis, sem autonomia, que dependiam do homem ou surgiam como a sua tentação? Ao olhar para esta representação da mulher vejo anos de culpa e de contenção emocional, retratos que perduraram à luz de um moralismo bacoco, mostrando como a literatura bebe tanto da vida e a devolve num reflexo empoeirado.
B25 – Quão importantes te parecem projetos europeus como este, que procuram abordar temas difíceis através de processos artísticos e criativos?
cf – Considero que é de extrema importância que surjam mais projetos como estes, não só pelo tipo de experiência e aprendizagem vivenciada por quem participa, mas também pela abordagem que se faz a temas que, por vezes, não são fáceis de trabalhar junto do público. As propostas que são feitas axs artistas são desafiantes e a transformação desse objeto central em matéria artística, podem contribuir para leituras mais multidisciplinares. É igualmente salutar a partilha entre artistas e o modo como pode emergir tanta força e suporte de contextos temáticos tão adversos.
B25 – Enquanto autor/autora, quão presente está este tema no teu trabalho?
cf – O lugar da mulher na sociedade, e todas as questões inerentes ao universo feminino, é algo que sobre o qual penso todos os dias não só como mulher, mas enquanto artista e professora. É impossível que isso não esteja presente no meu trabalho, quer de um modo mais consciente ou inconsciente. Recordo-me, por exemplo, de um monólogo que escrevi acerca de uma mulher que decide fingir uma gravidez por causa da pressão que sentia.
B25 – Que desafios sentiste e sentes enquanto mulher e artista?
cf – Creio que é sempre preciso um maior esforço para me afirmar enquanto mulher e enquanto artista. Como se tivesse de dar constantemente provas do meu trabalho. Ou da minha existência! Mesmo em projetos com uma base mais feminista, ainda noto que há muito mansplaining e isso cansa. Faz-me rugas. E A teoria todos nós a sabemos, mas aplicá-la, bem, isso é outra coisa. Também tenho observado que, mesmo em projetos mais colaborativos, nem sempre a designação corresponde ao que acontece, como se o trabalho de uns fosse mais importante do que o de outros. Enquanto mulher e artista, já senti, muitas vezes, a condescendência masculina enquanto dava opiniões ou apresentava propostas e, por isso, sinto que ainda temos um longo caminho a fazer no que diz respeito à equidade no meio artístico.
B25 – Como descreverias a tua experiência nas várias residências em que participaste nos Balcãs?
cf – Recordo-me de, numa comunicação académica, ter falado acerca da minha experiência nos Balcãs e uma colega me ter chamado a atenção para o facto de me ter emocionado com alguns dos relatos que fui ouvindo durante as residências. Dizia ela que em Portugal isso também acontecia, portanto, era preciso ter cuidado no modo como me exprimia. Acho sempre curioso este policiamento dos sentimentos dos outros, daquilo que os outros devem sentir e do modo como se devem expressar. A verdade é que vivi uma experiência muito diferente da minha e, mesmo tendo consciência do contexto português, é-me difícil não me emocionar quando se ouve uma mulher dizer que o pai sempre a tratou por ‘filho’ e não filha ou nos falam de aborto seletivo. É como se se nascer mulher fosse uma maldição. A partilha de todas estas temáticas com as minhas colegas do projeto deu-me a sensação de uma rede forte de mulheres que se ouvem e se respeitam. Aprendi também que eu e a comida dos Balcãs não somos melhores amigos!
B25- Do trabalho que desenvolveste nos Balcãs, como achas que esses contextos se relacionam com a realidade portuguesa? Quais sãos as semelhanças e diferenças mais importantes?
cf – Apesar de haver muitas diferenças históricas e culturais entre os dois países, sinto que, principalmente nas gerações mais jovens, a ocidentalização e o mundo digital contribuem para uma uniformização do modo como as mulheres vivem e das dores que partilham. Tanto em Portugal como em Montenegro, ainda há muita dor, vergonha, silêncio e culpa, embora, por vezes, possa estar mais disfarçado. Talvez nos Balcãs tenha sentido mais essa crueza. Principalmente no que diz respeito ao tratamento entre pais e filhas. Mas em ambos os países, ainda há muitas visões altamente machistas enraizadas e que precisam de ser combatidas diariamente.
B25 – Que resultado e/ou impacto gostarias que o Sexual Theatre tivesse?
cf – Num mundo ideal, gostaria que a mensagem que estamos a tentar passar através dos quatro textos e espectáculos chegasse ao público, que compreendessem a nossa visão e que fizessem esta caminhada connosco. Os clássicos são importantes, fazem parte da nossa história, mas é preciso lê-los com sentido crítico e à luz de épocas que foram horríveis para as mulheres. Seria importante que este passo que estamos a dar nos desse a possibilidade de abaixo mais uns tijolos deste muro patriarcal.
Podes ficar a conhecer melhor a cátia no episódio do videocast da Braga 25 “O Lugar”. Assiste aqui.