Criador e intérprete, natural de Braga, Júlio licenciou-se em, em 2015, em teatro pela Universidade do Minho e, em 2018, concluiu os seus estudos de investigação em artes no mestrado em artes cénicas da ESMAE. Em 2019, cofundou a BANQUETE, uma estrutura que desenvolve trabalho na área da investigação e criação em artes performativas. Neste momento, é doutorando em arte contemporânea no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Enquanto intérprete e criador, colaborou com Né Barros, Elisabete Magalhães, Rogério Nuno Costa, Sandro William Junqueira, Gustavo Ciríaco, Tales Frey, Festival DDD, Ballet Contemporâneo do Norte, Zet Gallery, Hosek Contemporary (Berlim), entre outros
O projeto Sexual Theatre – Feminist Readings of Classics, que integra o programa da Braga 25, resulta da cooperação entre Portugal, Bósnia e Herzegovina, França e Montenegro. Pretende desenvolver uma releitura feminista de clássicos da literatura desses países, através da criação de espetáculos inéditos que, durante este ano, viajam nesses mesmos países em formato de festival.
Braga 25 (B25) – O que te motivou a participar no projeto Sexual Theatre?
Júlio Cerdeira (JC) – A vontade de perceber como é que o meu trabalho pode contribuir de forma mais direta para a problematização de assuntos como a violência contra as mulheres, através de uma abordagem que incentiva a criação de novas dramaturgias sobre o tema e de práticas artísticas de criação intercultural.
B25 – O que pensas da representação das mulheres nos clássicos da Literatura portuguesa?
JC – Penso que não é suficientemente expressiva e, quando existe, tende a não ir para além dos estereótipos sociais do período histórico em questão. Às vezes, parece difícil perceber como é que há tantos autores capazes de heroizar personagens masculinas e incapazes de olhar as mulheres para lá de um conjunto de preconceitos arquetípicos. Daí a prioridade deste trabalho que propõe a autoras estrangeiras que criem novos olhares sobre a forma como as mulheres são representadas em clássicos da literatura, repensando diferentes contextos históricos, sociais e políticos.
B25 – Quão importantes te parecem projetos europeus como este, que procuram abordar temas difíceis através de processos artísticos e criativos?
JC – Estes projetos europeus parecem-me fundamentais por criarem redes de trabalho que questionam e problematizam as diferentes abordagens a políticas feministas. Criam-se pontes excecionais que realçam a ideia de que não há formas certas de ser feminista, mas sim melhores formas para diferentes contextos. Portugal é interseccional e cooperativo, unindo forças com outras minorias socias para um progresso mais acelerado na conquista de direitos das mulheres. Já na Bósnia, os movimentos de direitos das mulheres tendem a agir de forma mais isolada, como especial atenção aos crimes de guerra de motivação etno-religiosa. Diferentes territórios políticos e geográficos requerem diferentes abordagens ao feminismo. Estes processos criativos não só informam as equipas, como as fazem partilhar no processo e no palco diferentes metodologias de ação política e de pensamento estético. Para além de se informar os públicos sobre diferentes realidades sociopolíticas, também se fundam discursos mais empáticos para com as mulheres e as suas experiências.
B25 – Enquanto autor/autora, quão presente está este tema no teu trabalho?
JC – A ressignificação é um dos temas centrais do meu trabalho, pois considero que a leitura da realidade está sempre altamente condicionada por noções paradigmáticas que distorcem a nossa perceção do mundo. No meu trabalho artístico, ressignificar conceitos e corpos é a forma mais eficaz que encontro de criar brechas nestes paradigmas, questionando as tentativas conservadoras de fixação do género e do corpo. O projeto Sexual Theatre parte da consciência de uma tendência de sub-representação das mulheres na literatura e propõe a reescrita de personagens e narrativas que nos permitam olhar com sentido crítico obras e autores que consideramos de referência. Não desfazendo a forma detalhada e cuidadosa com que Ivo Andrić escreve a personagem Mara Milosnica, julgo que é relevante este novo diálogo com a obra, abrindo-a a outros tempos, relacionando-a com a minha linguagem estética, com Bósnia dos anos 90 e a Bósnia contemporânea do pós-guerra.
B25 – Quão próximo é este tema para ti enquanto artista e pessoa queer?
JC – Enquanto artista queer é importantíssimo para mim aliar-me à equipa do projeto Sexual Theatre no combate a formas de violência contra mulheres e pessoas queer. Este tema é-me muitíssimo próximo, porque muita da violência dirigida às mulheres tem uma origem semelhante à violência dirigida às pessoas queer. Facilmente nos apercebemos da existência de um ódio contra figuras que desafiam conceções tradicionais de género, que procuram a sua redefinição e reapresentação, seja pelo empoderamento da mulher ou pelo desafio da não binaridade das pessoas queer. O meu trabalho é sobre a apresentação de figuras de resistência e de novos modelos de vida ou de experiência do corpo.
B25 – Como descreverias a tua experiência nas várias residências em que participaste nos Balcãs?
JC – A primeira residência caracterizou-se pelo choque cultural. Nunca tinha estado nos Balcãs e passamos 5 dias a falar exclusivamente sobre a violência contra as mulheres em quatro países diferentes. Foi uma semana pesada contudo, onde se fundaram relações excecionais. A segunda semana foi um prazer de verão inebriado por nuvens de fumo de xixa, cafés nas ruas de Sarajevo e caminhas por pistas abandonadas de bobsleigh. Foi uma residência de escrita, onde a Aïcha Euzet começou a esboçar o texto e eu a criar imaginário estético para a encenação. A terceira residência foi a maior e unicamente dedicada ao processo de criação. Nesta residência, perdemo-nos muitas vezes em traduções, mas confiamos nos nossos instintos para criar uma peça que fosse um retrato justo e digno da experiência das mulheres bósnias, vítimas de violência em contexto de guerra/invasão.
B25 – Do trabalho que desenvolveste nos Balcãs, como achas que esses contextos se relacionam com a realidade portuguesa? Quais sãos as semelhanças e diferenças mais importantes?
JC – A maior diferença é a ausência de guerra em território nacional por um período já muito alargado. A Bósnia sofreu regularmente de guerras e invasões que deixaram marcas evidentes na sua população e no seu território (edifícios, ruas, campos minados). Um dos temas da peça ŽIVE é a violação sistémica e regular de mulheres bósnias em campos de violação por soldados sérvios na Guerra da Invasão da Bósnia (1992-1995). Estas práticas de limpeza étnica tinham como objetivo destabilizar e desintegrar comunidades, bem como, repopular a Bósnia com crianças que não fossem muçulmanas, obrigando mulheres mantidas em cativeiro a terminar gravidezes de crianças apelidas de “filhas do inimigo”, crianças fruto destas violações em massa.
A maior semelhança que encontro e que é também tema da peça ŽIVE, é a sororidade. Tanto em Portugal como na Bósnia, as mulheres (familiares, amigas, ativistas, trabalhadoras de ONGs) são as pessoas mais importantes no processo de recuperação de independência e dignidade das mulheres vítimas de violência. São fundamentais neste processo de cuidado e restruturação da sua vida. Daí Aïcha Euzet ter escrito uma peça sobre isso mesmo, sobre mulheres que distendem o espaço-tempo para suportar outras mulheres, para garantir que as vítimas encontram alguma luz que as mantenha vivas (žive – vivants).
B25 – Que resultado e/ou impacto gostarias que o Sexual Theatre tivesse?
JC – Gostaria que este projeto fosse o abrir de uma porta, que permitisse à cidade continuar este trabalho na defesa dos direitos das mulheres, através de iniciativas como esta que reforçam a importância da criação artística como motor fundamental para construção de um projeto de sociedade mais digno e humano.
Podes ficar a conhecer melhor Júlio no episódio do videocast da Braga 25 “O Lugar”. Assiste aqui.